O Brasil, historicamente, sofre com a
repressão das forças militares sobre os seus cidadãos. As cenas de
violência protagonizadas pela Polícia Militar do Paraná em opressão aos
protestos do professores da rede pública nesta quarta-feira (30/04)
foram mais um capítulo desta triste história nacional.
Rotina triste da realidade brasileira, as crises na segurança pública
marcaram o passado recente do país. Greves de policiais, confrontos
entre manifestantes e forças de segurança, mortes e rebeliões em
presídios, prisões arbitrárias, perseguição à manifestantes e uso
descabido de armamento de repressão.
Apesar dos avanços sociais recentes, o Brasil continua a conviver com
taxas inaceitáveis de criminalidade. Apenas em 2013, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 53.646 mortes violentas – um assassinato a cada dez minutos.
Em meio a essa guerra, as despesas com os custos sociais da violência
só aumentam: R$ 258 bilhões em 2013, gastos equivalentes aos de países
desenvolvidos e que expõem o fracasso e a desarticulação de nosso
sistema de justiça e segurança.
Esse cenário de saturação fortaleceu na sociedade o debate sobre a
desmilitarização da Polícia Militar, bandeira que a UNE defende como
forma de construção de políticas de segurança mais humanas.
“A Polícia Militar, sua concepção e prática, é obra da ditadura
militar brasileira. Ainda hoje é possível encontrar semelhanças, seja na
truculência, na tortura, no assassinato ou na ocultação de cadáveres,
como no caso Amarildo. A atuação da PM em protestos ou greves também
deixa clara a urgência da pauta”, afirma Thiago Pará, diretor de
Políticas Educacionais da UNE.
LETALIDADE POLICIAL
Os padrões de operação da Polícia Militar reforçam o coro por
reformas. A manutenção de uma cultura de guerra concebe a segurança como
uma luta permanente contra o “inimigo”, quase sempre identificado na
figura do jovem pobre e negro. Dados do SUS (Sistema Único de Saúde)
mostram que mais da metade das vítimas de homicídio no Brasil são jovens
– e mais de 70% desses jovens são negros.
Ao menos seis pessoas foram mortas por dia pelas polícias brasileiras
em 2013 – as vítimas chegam a 11.197 no período 2009-2013, o mesmo
número de mortes causadas pelas polícias nos EUA em 30 anos. Policiais
também padecem nessa guerra: foram 490 mortes em 2013, sendo 75% delas
em situações fora de serviço.
Essa realidade alimenta a percepção social que associa policiais à prática da tortura. Uma pesquisa da ONG Anistia Internacional
do ano passado apontou que 80% dos brasileiros não se sentem seguros ao
serem detidos por autoridades. Foi o maior índice entre 21 países
analisados, quase o dobro da média mundial, de 44%.
Para Luis Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança
Pública, os desafios de uma polícia ostensiva exigem estratégias
inviáveis na estrutura militar. Não basta apenas cumprir ordens e fazer
rondas, afirma ele, mas ser um gestor que planeja, dialoga e decide.
Isso sempre com participação da sociedade e, sobretudo, orientado pela
prevenção e pela garantia de direitos.
“Tudo isso só é viável em uma organização horizontal, descentralizada
e flexível, o inverso da estrutura militar. Engana-se quem defende
hierarquia rígida e regimentos disciplinares draconianos. Se
funcionassem, não haveria tanta corrupção e brutalidade nas PMs.
Eficazes são o sentido de responsabilidade, a qualidade da formação e o
orgulho de sentir-se valorizado pela sociedade”, afirmou Soares ao site
da UNE.
COMBATE AO MILITARISMO
A história de Darlan Abrantes, 40 anos, revela como o formato de
organização da PM está ultrapassado. Soldado da PM do Ceará por 13 anos,
ele foi expulso da corporação em janeiro do ano passado por divulgar
seu livro “Militarismo: um Sistema Arcaico de Segurança Pública” na
Academia de Segurança Pública do Estado.
“Sou a prova de que esse sistema é antidemocrático e não respeita a
liberdade de expressão”, diz Darlan, que deverá buscar a reintegração à
corporação na Justiça comum. Para ele, defender a desmilitarização é
como uma “luta de classes” contra privilégios estabelecidos. “Há
oficiais e delegados que não querem mudanças porque as mordomias são
grandes”, diz.
Procurada para comentar o caso, a PM do Ceará informou que as causas
da expulsão estão relacionadas na edição do “Diário Oficial” do Estado
que oficializou o desligamento.
Darlan foi processado na Justiça Militar por “criticar publicamente
ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar”. A
conclusão do inquérito disciplinar apontou que o ex-soldado quis “semear
indisciplina e insubordinação”. Afirma ainda que a Constituição
“relativiza o direito à liberdade de expressão pois garante ao ofendido
pela falácia desarrazoada e irresponsável o direito à indenização”.
O CAMINHO DAS MUDANÇAS
“Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar.” Esse
tem sido um dos cantos mais recorrentes em encontros da UNE pelo país, o
que mostra a força da causa entre os estudantes.
Para a União Nacional dos Estudantes, uma proposta que contribui para
os avanços defendidos pela entidade é a PEC (Proposta de Emenda
Constitucional) 51/2013, do senador Lindbergh Farias (PT-RJ).
O projeto prevê a organização dos órgãos policiais em carreira única e
autonomia dos Estados para estruturar suas instituições de segurança
pública. A nova polícia seria responsável tanto pela atuação ostensiva
como pela investigação, funções hoje divididas entre as polícias Civil e
Militar.
A Constituição de 1988 ratificou a divisão entre Polícia Militar e
Civil no Brasil. A Polícia Civil nos Estados, encabeçada por delegados
de carreira, cuida das funções de polícia judiciária (condução de
inquéritos) e da apuração de delitos penais. A Polícia Militar faz
policiamento ostensivo e busca preservar a ordem, numa separação
engessada que a última ditadura ajudou a consolidar.
O próprio relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV),
divulgado no ano passado, recomendou a desmilitarização, tendência que a
comissão descreve como herança da ditadura. “Essa anomalia vem
perdurando, fazendo com que não só não haja a unificação das forças de
segurança estaduais, mas que parte delas ainda funcione a partir desses
atributos militares, incompatíveis com o exercício da segurança pública
no Estado democrático de direito, cujo foco deve ser o atendimento ao
cidadão”, diz o texto.
A UNE apoia a mobilização e a pressão popular pelas mudanças na
estrutura da PM no Brasil. O caminho não será fácil, mas um dado anima:
73,7% dos policiais brasileiros apoiam a desmilitarização, índice que
alcança 76% entre PMs. A pesquisa ouviu mais de 20 mil policiais no
país.
“O projeto [PEC 51/2013] avança na perspectiva de unificação das
carreiras civil e militar das polícias, na desmilitarização, na mudança
nos currículos das escolas militares, construção de ouvidorias, entre
outros pontos. É uma mudança positiva e certamente contribuirá para
tornar nossa segurança pública mais humana”, afirma Thiago Pará.