A proposta deste artigo é examinar a participação popular
na gestão pública, como pressuposto do sistema democrático-participativo
adotado no Brasil com a Constituição Federal de 1988. A partir do enfoque
jurídico, opta-se inicialmente por delinear o perfil constitucional do Estado
brasileiro, em conformidade com a ordem jurídica estabelecida a partir de 1988.
Também, sob esse prisma, serão traçados os contornos da participação
popular na gestão pública, tendo em vista a chamada concepção contemporânea
de cidadania e de democracia.
Palavras-Chave: Cidadania; Democracia; Participação
popular.
Abstract
This article’s proposal is to examine the public management
popular participation as a presupposition of the democratic-participant system
taken by the 1988 Federal Constitution in Brazil. From the juridical focus, it
chooses first to delineate the constitutional profile of Brazilian State
according to the juridical order established from 1988. It is also from this
focus that it is traced the contour of the public management popular
participation in our eyes the so called democracy and citizenship contemporary
conception.
Key-Words: Citizenship; Democracy; Popular Participation.
A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988
consagra-se uma nova ordem jurídica e política no país. A década de oitenta,
considerada por muitos como uma década perdida do ponto de vista da economia,
trouxe no campo social um conjunto de inovações que pretendem dar ao Estado
brasileiro uma feição democrática sepultando, de uma vez por todas, as
mazelas do regime autoritário. Sem a menor dúvida a Constituição Federal de
1988 pode ser considerada um marco da transição democrática brasileira.
As inovações consagradas na Constituição de 1988
colocaram o Brasil como um dos paises de legislação mais avançada, no que diz
respeito à proteção aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais.
Contudo, essas inovações tendem a não surtir o efeito esperado, na medida em
que a sociedade brasileira desconhece seus direitos e em que proporção eles
são protegidos pelo Estado, permitindo que setores conservadores façam
"tábua rasa" das conquistas sociais presentes no texto
constitucional.
Dessa forma, o primeiro passo a ser dado na construção de
uma sociedade verdadeiramente democrática é possibilitar ao cidadão o acesso
à informação de em que medida seus direitos são protegidos pelo Estado e de
que forma eles podem acionar o poder público na defesa desses direitos. Essa,
sem dúvida nenhuma, é uma tarefa, também, da educação em nosso país
qualquer que seja a sua origem (pública estatal, pública não-governamental ou
privada). Essa tarefa está relacionada à noção de que a educação só é
legitima quando se propõe a construir a cidadania em relação ao indivíduo e
a democracia em relação à sociedade. Feitas essas considerações iniciais
passaremos a discutir nas próximas linhas a participação popular, enquanto
direito consagrado em nossa atual Constituição.
Para a professora Flávia Piovesan (2000) a partir da
Constituição de 1988, há uma redefinição do Estado brasileiro, bem como dos
direitos fundamentais. Em seu preâmbulo, a Carta de 1988 define a instituição
de um Estado democrático: "destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]. Dentre os princípios que
alicerçam o Estado brasileiro destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa
humana conforme previsto no artigo 1º, incisos II e III.
Mais adiante, a Constituição de 1988 consagrou, entre seus
princípios fundamentais, a "participação popular"na gestão
pública como direito à dignidade da pessoa humana. Em seu artigo 1º,
parágrafo único, o legislador constituinte, expressa o princípio da soberania
popular pelo qual "todo o poder emana do povo" que o exerce
através de seus representantes ou "diretamente", na forma
estabelecida pela Constituição. Este princípio reúne as concepções de
democracia direta e democracia representativa, de modo a somar seus efeitos em
benefício da coletividade, objetivo final do Estado e da Administração
Pública.
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Para Dallari (1996, p.13-51), a participação popular
prevista na Constituição Federal de 1988 é um princípio inerente à
democracia, garantindo aos indivíduos, grupos e associações, o direito não
apenas à representação política, mas também à informação e à defesa de
seus interesses. Possibilita-lhes, ainda, a atuação e a efetiva interferência
na gestão dos bens e serviços públicos.
Essa noção de"participação popular"
está intrinsecamente ligada à própria concepção de cidadania que está
prevista em nossa Carta Magna que vai além da concepção liberal de
titularidade de direitos civis e políticos, que reconhece o indivíduo como
pessoa integrada na sociedade, onde o funcionamento do Estado estará submetido
à "vontade popular", como base e meta essencial do regime
democrático e do Estado de Direito (SILVA,1992, p. 102-107). Nesse sentido, é
que nossa Carta Constitucional é considerada por muitos uma Carta cidadã.
Dallari (1996, 1996, p.13-51) refere-se a esta questão da seguinte forma:
a participação popular significa a satisfação da
necessidade do cidadão como indivíduo, ou como grupo, organização, ou
associação, de atuar pela via legislativa, administrativa ou judicial no
amparo do interesse público - que se traduz nas aspirações de todos os
segmentos sociais.
Além desta norma genérica vários artigos da Constituição
de 1988 prevêem a participação do cidadão na gestão pública, seja através
da participação da comunidade, no sistema único de saúde e na
seguridade social (art. 198, III e art. 194, VII); seja como,
"participação efetiva dos diferentes agentes econômicos envolvidos em
cada setor da produção" (art. 187,caput). E ainda, nos casos da
assistência social e das políticas referentes À criança e ao adolescente
onde a participação da população se dá "por meio de organizações
representativas" (art. 204, 22).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado
pela lei 8.069/90, dá conteúdo ainda mais preciso às inovações introduzidas
na Constituição de 1988 no que diz respeito à participação popular na
discussão de políticas públicas de proteção à criança e ao adolescente.
Assim os Conselhos da Criança e do Adolescente – considerados obrigatórios
seja a nível nacional, estadual ou municipal – "deverão ter assegurados
a paridade entre organizações representativas da população e os órgãos do
governo" (art.88,I).
Na área da saúde, a legislação federal introduz em todo o
país a participação da sociedade na gestão pública, mediante conferências
de saúde – órgão de caráter propositivo – e dos conselhos de saúde, a
quem compete formular estratégias e controlar a execução da política de
saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. (BRASIL.Lei, 1990b).
Ainda na esfera federal, a lei 9394/96 que institui as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) pressupõe a participação do
cidadão na gestão democrática do ensino público de acordo com as
peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I – participação dos
profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II-
participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou
equivalentes (LDB, art.14, I e II). Já a lei 9424/96, que dispõe sobre o fundo
de manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e de valorização do
magistério (FUNDEF), diz que os recursos federais do FUNDEF serão objeto de
controle social sobre a repartição, aplicação e transferência, junto aos
respectivos governos, por conselhos a serem instituídos em cada esfera no prazo
determinado pela lei (180 dias a contar da data da vigência da lei).
Por outro lado as Constituições Estaduais, por iniciativa
de seus legisladores, diante do chamado "efeito dominó" estenderam a
participação popular a diversas outras áreas, notadamente àquela referente
ao monitoramento das políticas sociais. Na mesma trilha as leis orgânicas
municipais contemplaram várias formas de participação direta do cidadão no
planejamento municipal com destaque para os conselhos municipais, o orçamento
participativo e as audiências públicas.
Neste cenário, o fato novo e de grande repercussão para os
gestores públicos em geral, foi a entrada em vigor da lei complementar nº 101
de 04 de maio de 2000, lei de responsabilidade fiscal, que se aplica a União,
estados e municípios estabelecendo o seguinte: deve haver ampla divulgação
dos planos e do orçamento durante o processo de elaboração e discussão; os
processos de elaboração das leis orçamentárias devem ser transparentes, isto
é, claros, públicos, com incentivo à participação popular e a realização
de audiências públicas (art. 48, § único); as contas deverão ficar
disponíveis durante todo o exercício para consulta e apreciação pelos
cidadãos e instituições da sociedade (art. 49); para o acompanhamento e
avaliação da gestão fiscal, a lei prevê a criação de um conselho fiscal,
constituído de representantes de todos os poderes, inclusive, do Ministério
Público e de entidades técnicas representativas da sociedade (art.67). Por
outro lado, é de se observar o surgimento de outras formas de participação
direta ou semidireta no Brasil, com a criação de ouvidorias, e a instituição
de serviços de apoio à participação popular (PROCON, defensorias públicas
etc.) que ampliam o campo de incidência da participação popular.
Em síntese, extrai-se do sistema constitucional e
infraconstitucional brasileiro os delineamentos de um Estado constitucional
democrático mais conhecido como democracia participativa. Sem dúvida, a
concepção que busca articular a democracia representativa com mecanismos de
democracia direta é chamada de democracia participativa. Ela se opõe tanto à
concepção pluralista de democracia (democracia direta), quanto, sobretudo, a
uma concepção minimalista de democracia, que é denominada de "democracia
legal" proposta pelos liberais.
Para Lyra (2000, p.17) só há participação popular efetiva
quando existe democracia participativa, quando o cidadão pode "[...]
apresentar e debater propostas, deliberar sobre elas e, sobretudo, mudar o curso
de ação estabelecida pelas forças constituídas e formular cursos de ação
alternativos [...]", ou seja, sempre que houver formas de o cidadão
participar, decidindo, opinando, diretamente, ou de forma indireta, por meio de
entidades que integra, a respeito de uma gama diversificada de instituições,
no âmbito da sociedade (família, empresas, mídias, clubes, escolas etc.) ou
na esfera pública (conselhos, orçamento participativo, plebiscito, referendo
etc.).
Fica claro, portanto, que a democracia participativa não se
confunde com a democracia representativa, embora possa coexistir perfeitamente
com ela, como, aliás, ocorre no Brasil. Nas palavras de Lyra (2000, p.18)
"[...] os constituintes optaram por um modelo de democracia representativa,
com temperos de princípios e institutos de participação direta do cidadão no
processo decisório governamental ".
Para Rocha um dos primeiros teóricos a falar da democracia
participativa foi Macpherson. Ele considerava o regime soviético uma forma de
institucionalização, ainda que falha, da democracia direta. Mesmo se o estudo
do caráter dos regimes ditos socialistas está longe de ter avançado, poucos
sustentariam hoje que eles tenham configurado algum tipo de democracia. Na
verdade, muito pouco tem a ver as atuais experiências de democracia direta com
os modelos conceituais formulados por Macpherson (ROCHA,2001a:58).
No seu livro A democracia liberal, Macpherson
mostra-se favorável à democracia participativa, combinada com a representativa
"um sistema piramidal com a democracia direta na base e a democracia por
delegação em cada nível depois dessa base". Trata-se de um sistema de
delegação seqüenciado para cima, com a organização de conselhos de cidades,
da região, até o topo da pirâmide, com a organização de um conselho
nacional. (MACPHERSON, 1978:110).
Em seu livro A ascensão e queda da justiça econômica,
Macpherson se rende às dificuldades para a construção de uma democracia
participativa nos moldes das democracias ocidentais, estimando que os grupos de
pressão organizados na sociedade civil, não teriam condições de harmonizar a
lógica interna de seu funcionamento e/ou defesa de seus interesses
particulares, com o envolvimento de seus integrantes em práticas participativas
voltadas para o bem comum (MACPHERSON, 1991, p.80). As formulações de
Macpherson sobre o tema mostram-se bastantes defasadas da democracia
participativa na atualidade. Em particular da que floresce no Brasil
caracterizada pela rica diversidade de suas experiências.
Outra contribuição importante para a formulação da
concepção de democracia participativa foi a teoria de Nicos Poulantz sobre a
democracia direta formulada nos anos 70. Na perspectiva de Poulantz, a
disseminação da democracia direta, sob a forma de focos embrionários de poder
popular se confundiria com o desabrochar das instituições socialistas. Para
Poulantz a transição do capitalismo para o socialismo consistiria em
impulsionar a proliferação de centros de democracia direta, a partir das lutas
populares que extravasam sempre, e de muito, o Estado (POULANTZ apud
ROCHA, 2001a, p.:62).
No Brasil Weffort (1992, p.85), afirma que a luta pela
consolidação da democracia participativa em nosso país se torna uma
estratégia, utilizada pelos movimentos sociais, ONGs, igreja etc. para
efetivação da cidadania e, conseqüentemente, a instalação de uma sociedade
mais justa e igualitária. Para aqueles que consideram a democracia um regime
fundamental e a reforma um instrumento válido para a transformação social, a
democracia participativa se constitui em ingrediente indispensável.
Por fim, podemos concluir que a participação veio a dar a
tônica contemporânea da democracia no Brasil. Cumpre-se, portanto, examinar a
participação popular enquanto requisito essencial à cidadania. Dentro dessa
realidade e com base no texto da Declaração Universal de 1948, podemos fixar
as linhas de um novo direito social em formação, representado pelo direito que
tem cada pessoa a participar ativamente no processo de desenvolvimento de sua
comunidade ou de seu município.
A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA GESTÃO PÚBLICA
O despertar da sociedade civil e a participação ativa de
seus setores no processo de desenvolvimento da sociedade constituem fenômenos
marcantes da história atual. A substituição das antigas formas paternalistas,
autoritárias e clientelistas pelas práticas e processos democráticos, em que
o cidadão passa a atuar, fiscalizar e tomar iniciativas, através de
comunidades, grupos de múltipla atuação e movimentos sociais, passa a ser uma
exigência àquelas sociedades que querem se considerar verdadeiramente
democráticas, isto é, a substituição do paternalismo pela participação é
um imperativo da moderna política social.
Ser cidadão não se trata apenas de receber os benefícios
do progresso, mas de tomar parte nas decisões e no esforço para sua
realização. Em lugar de ser tratado como objeto das atenções paternalistas
dos donos do poder, o cidadão passa a ser reconhecido como sujeito histórico e
protagonista no processo de desenvolvimento. Trata-se de uma exigência
decorrente da natureza inteligente e responsável da pessoa humana. Na medida em
que se queira respeitar a dignidade da pessoa humana, é preciso assegurar-lhe o
direito de participar ativamente na solução dos problemas que lhe dizem
respeito.
Dentro desse quadro, vimos que a Constituição de 1988
consagrou, entre seus princípios fundamentais, a participação popular na
gestão pública como direito à dignidade da pessoa humana, determinando que o
regime político no Brasil é não apenas representativo, mas, também
participativo (MONTORO, 1999, p.17).
Contudo, o princípio da participação popular previsto em
nosso ordenamento tem sido interpretado de várias maneiras pelos diversos
atores sociais, seja através de estratégias de manipulação da opinião
pública (populismo), seja para negar qualquer condição de institucionalidade
à participação popular. Vejamos algumas dessas posições para ao final
apresentar nossa concepção de participação popular.
As formas de participação popular podem ser classificadas
com base em diversos critérios. Ferrier (apud DALLARI,1996, p.13-51)
adota o sistema correlativo às formas de exercício da democracia, e as divide
em: Participação ideológica - é a participação mediata, visto que entre o
administrado e a Administração Pública há um representante eleito que agirá
em nome dos cidadãos perante o poder público. Aqui, o cidadão participa
representado pelos parlamentares eleitos; Participação psicológica - ocorre
normalmente em nível local (municipal), onde a distância entre o cidadão e o
poder público é muito menor. Com isso, o particular tem maiores possibilidades
e oportunidades de influenciar nas decisões da Administração Municipal e de
pressionar para que elas sejam colocadas em prática. Por essa razão é que a
descentralização e a autonomia municipal são de fundamental importância para
a efetivação da participação popular. Aqui, de forma não
institucionalizada, o cidadão tem um maior poder de influência junto à
Administração da cidade; Participação direta - Nesse caso, não existe entre
a administração e o cidadão um intermediário. O indivíduo, pessoalmente ou
através de grupos ou associações representativas, interferirá na
elaboração das leis, nas decisões administrativas e na gestão de bens e
serviços públicos. Aqui, a participação da população na gestão do
município ocorre de forma institucionalizada e concreta, através de mecanismos
legais.
Por sua vez, a professora Maria Silvia Zanella Di Pietro
divide as formas de participação popular em duas grandes modalidades: formas
de participação direta, como, por exemplo, a iniciativa popular legislativa, o
referendo, o plebiscito; e formas de participação indireta, como a
participação por meio de ouvidor, ou através da atuação em conselhos. Outro
critério de classificação corresponde às possibilidades de participação
democrática dentro de cada um dos poderes do Estado definidos por Montesquieu (DI
PIETRO apud ROCHA,2001a:134). Com base nesse critério, pode-se conceber, uma
estrutura como a que se segue: poder legislativo: a consulta prévia, as
audiências públicas, iniciativa popular, plebiscito ou referendo; poder
executivo: conselhos de gestão, direito de petição, ouvidor (ombudsman);
poder judiciário: ação popular, representação ao Ministério
Público e ação civil pública.
Maurizio Cotta (apud TEIXEIRA, 1998, p. 216) propõe
quatro distinções que englobam as várias formas de participação concebidas,
ou de alguma forma exercitadas, em alguns regimes políticos. A primeira,
entendida na dicotomia - participação indireta (sentido amplo) e
participação direta (sentido estrito). A participação indireta abarca todas
as manifestações do cidadão no sentido da incorporação ao sistema
político, desde os atos eleitorais até ações que visam a definir
orientações políticas dos órgãos de poder ou de controlá-los através de
mecanismos de intermediação. A participação direta envolve a ação direta,
sem intermediação, nas várias instâncias de decisão. A segunda visão é
tida como alternativa à crise do sistema representativo, principalmente por
movimentos de caráter comunitaristas, de base localista, que investem na
virtude cívica dos cidadãos, minimizam a complexidade e diferenciação da
sociedade contemporânea e propugnam o autogoverno como solução para todos os
males.
Outra distinção apresentada por Cotta (apud
TEIXEIRA, 1998, p. 216), diz respeito à participação orientada à decisão e
à participação orientada à expressão; a primeira caracteriza-se pela
intervenção de forma organizada no processo decisório e tem sido enfatizada,
até pelos seus críticos, como elemento fundamental e definidor do conceito. A
segunda, voltada para a expressão, ainda que possa apresentar impacto ou
influência no processo decisório, tem o caráter, mais simbólico, de marcar
presença na cena política e não é muito estudada pela ciência política.
Segundo Lima (1983, p. 21-39), a participação popular pode
ser vista por dois enfoques básicos: o enfoque funcionalista e o histórico
cultural. Do ponto de vista funcionalista, a participação da população seria
considerada um meio de se obter apoio para programas oficiais de desenvolvimento
social, uma vez que sem esta o programa não poderia se concretizar; ou um meio
de se aproveitar melhor os próprios recursos da população. A partir desta
abordagem, a participação é explicada pelas características culturais e
sociais de indivíduo e grupos, que superariam a defasagem de participação
através da organização e mobilização em programas de desenvolvimento,
através da mudança de valores tradicionais para valores urbanos e modernos.
Nesta concepção, problemas sociais como saúde, emprego,
moradia etc., são vistos como decorrentes da falta de integração da
população à sociedade, por razões de ordem cultural como a ignorância,
atraso, apatia etc., que devem ser superados com a introdução de programas
sociais que incentivem a participação da população através da introdução
de valores modernos e de tecnologia. O enfoque histórico-estrutural da
participação popular privilegia a noção de estrutura econômica, política e
ideológica nas formações sociais concretas, procurando, nas diferentes etapas
históricas, as causas que geram a marginalidade e a participação. As
relações de produção, assim como suas expressões ideológicas e políticas,
são vistas como fundamentais para explicar as formas de participação social e
cultural.
Para Dallari (1996, p.80), ao falarmos em participação
popular nas políticas públicas, devemos diferenciar a participação real da
participação formal. A participação formal é a prática de formalidades que
só afetam aspectos secundários do processo político. A participação real é
aquela que influi de algum modo nas decisões políticas fundamentais.
A novidade, no Brasil, nos anos 80, é justamente a idéia de
que esse controle seja feito pela sociedade através da presença e da ação
organizada de seus segmentos. O processo de democratização trouxe à cena
novos atores e questões na esfera das relações Estado-sociedade. Do lado da
sociedade, torna-se visível a presença de uma diversidade de atores. Do lado
do Estado, vai-se firmando sua dimensão de espaço de representação e
pactuação. O processo de participação deixa de ser restrito aos setores
sociais excluídos pelo sistema e pretende dar conta das relações entre o
Estado e o conjunto de indivíduos e grupos sociais, cuja diversidade de
interesses e projetos integra a cidadania, disputando com igual legitimidade
espaço e atendimento pelo poder estatal.
O sociólogo basco Jordi Borja (apud SOARES, 1996, p.
31-39), referindo-se a esta questão, afirma a necessidade de uma tripla
credibilidade do Estado democrático, honesto, eficaz, envolvendo
representação em todos os níveis, descentralização, transparência nos seus
gastos e abertura de diálogo. Considera o autor que a participação é antes
um problema do Estado e de seu governo do que da sociedade.
Borja (apud SOARES, 1996, p. 31-39), analisando a
crise do Estado europeu a partir dos anos 60/70, caracterizada pelo alargamento
crescente do distanciamento entre representantes e representados, passa a
afirmar que o grande desafio da esquerda seria o de reformar o Estado atual, no
sentido da descentralização e da participação cidadã. Considerando que os
parlamentares não dão mais conta de toda a diversidade presente nas sociedades
contemporâneas o centro da crise situa-se na equação entre o aumento da
expectativa em relação à plena cidadania e os mecanismos de decisão
dominantes nas agências públicas.
A expressão "participação popular" foi, também,
muito usada para descrever a ação desenvolvida pelos movimentos populares,
sobretudo os urbanos, nas últimas décadas, em grande parte de caráter
reivindicativo, ou de protesto. Esta visão colocava-se como antiestado embora
tivesse o Estado como alvo de suas reivindicações, e a política concebida
como ação apenas no cotidiano, sem nenhuma relação com o institucional. A
reflexão teórica é substituída pela troca de experiências, com a
idealização do saber popular (TEIXEIRA; CARVALHO, 1996, 61-70).
Por outro lado, a expressão foi concebida com evidente
sentido ideológico, em termos de privilegiar os segmentos sociais mais
explorados principalmente urbanos, em detrimento de setores sociais definidos
fora do campo popular. (DANIEL,1996: p.21-26).
Ademais, a expressão também foi utilizada por governos e
organismos internacionais para envolver segmentos dominados da população em
projetos e políticas governamentais, inclusive como estratégia de cobrir
insuficiência de recursos, além de objetivos de manipulação ideológica,
pretendendo conferir legitimidade a governos, ou mesmo na estratégia de
privatizar certas atribuições até então conferidas ao Estado.
Diante disso, Rocha (2001a) propôs a construção de um
quadro teórico que agrupe as diversas concepções sobre participação popular
em três categorias básicas de análise histórico-teórica das formas de
representatividade da participação popular na gestão pública, a seguir
resumidas, pretendendo, com isto, estabelecer as bases para reflexão sobre o
tema:
a) Participação popular comunitária: a idéia da
participação comunitária apareceu no início deste século, representando um
novo padrão de relação Estado-sociedade no setor da educação, para dar
respostas ao grave problema da relação entre pobreza e educação.
Caracterizou-se por dirigir-se aos mais pobres, através das escolas
comunitárias, por ressaltar os valores da educação, do trabalho e do
coletivismo como caminhos do progresso. Para estas concepções a comunidade era
definida como social e culturalmente homogênea, com identidade própria e uma
suposta predisposição à solidariedade e ao trabalho voluntário de auto-ajuda.
O Estado, por sua vez, estimula em muitos casos, a capacidade de a comunidade
unir-se, organizar-se, esforçar-se, enquanto solução em si mesma. A
população deixa de ser alvo inerte de uma ação controladora e passa a ser
chamada a cumprir um papel minimamente ativo e consciente.
b) Participação popular contestatória: Nos anos 70, a
participação passa a ter um sentido explícito de luta e contestação contra
as limitações governamentais à tentativa de conquista da educação pelas
classes populares. O espaço de participação ultrapassa os limites do setor de
educação, alcança o conjunto da sociedade e do Estado e ocorre uma
radicalização da prática ao se articular a mobilização dentro das
instituições de educação, como as formas de luta, resistência e
organização das classes populares. Para estas teorias, qualquer forma de
aproximação com o Estado è vista como cooptação e o sentido da
participação é o de acumular forças para a batalha permanente pela mudança
geral do modelo existente.
c) Participação popular cidadã e o controle social do
Estado: o Estado democrático e de direito reconhecem a necessidade de defender
a sociedade contra os eventuais excessos no funcionamento da máquina estatal,
através da divisão de funções entre os poderes e de mecanismos recíprocos
de controle, em nome da sociedade. A novidade nos anos 80 é justamente a idéia
de que esse controle seja feito pela sociedade através da presença e da ação
organizada de seus segmentos. O processo de abertura política e
redemocratização do país trouxe à cena novos atores e orientou a ação para
a criação de espaços públicos não-estatais de pactuação e superação dos
obstáculos pelo diálogo e pelo consenso. Do lado da sociedade, torna-se
visível a presença de diversos atores sociais, cuja diversidade de interesses
e projetos integra a cidadania, disputando com igual legitimidade espaço e
atendimento pelo poder estatal.
Neste caso, a categoria central deixa de ser a comunidade ou
o povo e passa a ser a sociedade civil organizada, tendo sua base na
universalização dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, na
ampliação da dimensão da cidadania e da democracia, e numa nova compreensão
do caráter e do papel do Estado pós-moderno.
A construção destas categorias de análise nos permite ter
uma melhor compreensão do marco referencial da participação de setores
populares na definição das políticas públicas, revelando os estágios da
reforma democrática do Estado brasileiro, que parece ainda estar em curso.
Entendemos que a dimensão atual da participação popular
difere das duas primeiras acima mencionadas. Na verdade impõe-se a terceira
concepção proposta, como sugere Telles (1994, p.15-24): "requalificar a
participação popular nos termos de uma participação cidadã que interfere,
interage e influencia na construção de um senso de ordem pública regida pelos
critérios da equidade e justiça".Entendemos por participação
cidadã, a formulação apresentada por Borja (apud SOARES, 1996, p.
31-39) e Teixeira (1998, p. 218), como sendo:
O processo complexo e contraditório de relação entre
sociedade civil, Estado e mercado. Neste processo, os atores redefinem seus
papeis no fortalecimento da sociedade civil, através da atuação organizada
dos indivíduos, grupos, associações, tendo em vista, de um lado, a assunção
de deveres e responsabilidades políticas e, do outro lado, a criação e
exercício de direitos, no controle social do Estado e do Mercado em função de
parâmetros definidos e negociados nos espaços público.
Nesta perspectiva, a participação cidadã diferencia-se da
participação social e comunitária, na medida em que não busca realizar
funções próprias do Estado, como a prestação de serviços. Não se
constitui, outrossim, na mera participação em grupos ou associações para
defesa de interesses específicos, ou simples expressão de identidades. Essa
dimensão da participação popular, própria da sociedade civil, é a que
garante o exercício da democracia para além dos espaços formais de poder e da
representatividade eleitoral. Esta perspectiva leva em conta os interesses do
conjunto da população, em especial dos excluídos e dos pobres, e tenta
refletir uma visão abrangente e integrada do território, da sociedade e das
questões do desenvolvimento e que se volta estrategicamente para o médio e o
longo prazo.
A participação cidadã é vista como um processo capaz de
gerar uma nova dinâmica de organização social, fomentando a intervenção da
população nas políticas públicas. Não se esgota dentro do projeto, mas
relaciona-se diretamente com questões amplas, tais como democratização,
equidade social, cidadania e defesa dos direitos humanos. Neste sentido, requer
a democratização do poder sobre o uso de recursos financeiros e sobre a
definição e implementação de políticas públicas.
Por fim, conclui-se que o sucesso da atuação do Estado, no
que tange à consolidação da cidadania, está absolutamente condicionado à
tarefa de reinventar a atuação estatal sob uma nova lógica e referência.
Essa referência é a concepção inovadora de cidadania que põe como requisito
essencial a participação do cidadão na gestão pública nos seus três
níveis de atuação.