Com mais de 6.000 acolhimentos desde 2020, entidade já encaminhou 1.200 casos de aborto legal e seguro no Brasil e em países vizinhos

Diante de um cenário crônico de marginalização do aborto no Brasil, o Projeto Vivas chega em 2025 ao seu quinto ano de atividades com a missão de promover a dignidade, a preservação da saúde e a justiça reprodutiva a milhares de meninas, mulheres e pessoas que gestam desamparadas no país.

Atuando como uma rede de apoio e acolhimento para o aborto legal e seguro, o projeto realizou mais de 6.000 atendimentos no período. Desse total, orientou cerca de 1.200 pessoas a acessar o procedimento, seja dentro  do Brasil - para os casos tipificados na obsoleta lei nacional - ou em clínicas seguras na Argentina e na Colômbia, países onde a legislação do tema é mais avançada. 

“A existência do Projeto Vivas é uma resposta concreta à negligência do Estado com os direitos sexuais e reprodutivos da população brasileira”, afirma Rebeca Mendes, ativista e fundadora da entidade. 

Em 2024, o projeto registrou um salto significativo nos pedidos de ajuda, atendendo 4.240 meninas e mulheres com necessidade de acesso ao aborto. Dessas, 265 realizaram o aborto legal no Brasil, outras 265 fizeram o procedimento na Argentina, e quase 2.000 receberam informações baseadas em evidências sobre como fazer um aborto auto administrado de forma segura.

Com o amadurecimento da iniciativa, o maior desafio agora é alcançar as populações mais vulneráveis, que são as mais penalizadas pelos efeitos da criminalização do aborto e das barreiras sociais, políticas e morais que são historicamente atreladas à esta pauta no Brasil. 

“A criminalização e a desinformação penalizam de maneira mais severa as meninas e mulheres negras em situação de pobreza extrema, muitas vezes vítimas de violência sexual dentro do próprio núcleo familiar. Elas não têm apoio da família, da escola, de nenhuma rede institucional. Estamos falando de pessoas completamente sozinhas e aterrorizadas”, relata.

OMISSÃO DO ESTADO

O Projeto Vivas foi fundado diante da necessidade urgente de assegurar o cumprimento da legislação brasileira que permite o aborto em três situações: quando há risco à vida da gestante, quando a gravidez resulta de violência sexual ou em casos de anencefalia do feto. 

Apesar da previsão legal, a realidade é de negação sistemática ao acesso, sobretudo às populações em situação de maior vulnerabilidade. “Mesmo diante da legalidade, as violações são constantes, e é preciso garantir que essas pessoas consigam de fato acessar esse direito”, destaca Rebeca. 

Segundo ela, além do estigma do aborto, outra grande barreira ao seu acesso legal é a falta de informação do que é uma violência sexual, como o estupro de vulnerável ou marital. “Muitas das mulheres acolhidas nem sequer sabiam que tinham direito ao aborto legal”, acrescenta.  

DEFASAGEM LEGAL NO BRASIL

Mais do que assegurar as garantias vigentes do aborto nos três casos mencionados, a missão do Projeto Vivas é promover o debate e a conscientização para a necessidade de descriminalização do aborto.  A lei sobre o aborto no Brasil ainda data do Código Penal de 1940, tendo passado por uma única alteração, em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a inclusão no texto dos casos de anencefalia. 

Para se ter uma ideia da defasagem da lei ante as dinâmicas sociais vigentes no país, segundo a última Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), de 2021, uma de cada sete mulheres com até 40 anos já fizeram ao menos um aborto ao longo da vida, proporção que, aplicada à população brasileira de pessoas aptas a gestar, resulta em centenas de milhares de casos. 

Já os registros de abortos legais variam entre 2 e 3 mil casos por cada ano, segundo o Ministério da Saúde. A comparação entre os dados da PNA e os números oficiais de aborto legal no Brasil revela um contraste significativo, expondo a dimensão do aborto ilegal, incluíndo práticas inseguras capazes de resultar em lesões, mutilações, esterilidade e até óbito.

O aborto é uma das principais causas de mortalidade materna no país, afetando desproporcionalmente mulheres negras e de baixa escolaridade. A descriminalização é um passo fundamental para garantir a saúde, a autonomia e a dignidade de todas as pessoas que gestam no Brasil.

APOIO INTEGRAL

A atuação do Projeto Vivas compreende desde o acolhimento psicológico até o encaminhamento para redes de cuidado e articulação com serviços internacionais de saúde. Cada caso é tratado com sensibilidade, respeito às particularidades de quem busca ajuda e sigilo absoluto,  em conformidade com as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) . 

Apesar dos desafios, a equipe do Projeto Vivas se mostra resiliente e engajada em sua missão. Para elas, é fundamental não apenas oferecer caminhos seguros e respeitosos para quem busca interromper uma gestação, mas também denunciar publicamente as práticas de omissão e violência institucional que colocam vidas em risco. “Defendemos a descriminalização do aborto, para que nenhuma menina, mulher ou pessoa que gesta seja forçada a levar adiante uma gestação que ameace seu projeto de vida digna”, reforça a fundadora.

Outro ponto de destaque é a articulação com redes feministas internacionais, que permite o encaminhamento para clínicas seguras em países como Colômbia e Argentina. Essa cooperação tem sido vital diante do recrudescimento de pautas conservadoras no Brasil e da crescente criminalização de defensoras de direitos humanos. “O Vivas não substitui o Estado, mas ocupa uma lacuna que não deveria existir. Nossa luta é por políticas públicas eficazes, por um sistema de saúde que respeite a autonomia das mulheres e por um judiciário que cumpra seu papel de garantir direitos, não de julgá-los moralmente”, finaliza Rebeca.