A intensa onda de calor que assola o país, com temperaturas recordes e sensação térmica, prevista pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), para acima dos 60 °C no Rio de Janeiro, tem gerado impactos significativos nas condições de trabalho e levantado preocupações sobre a insuficiência das atuais legislações para resguardar a saúde dos trabalhadores expostos diretamente ao sol e ao calor extremo.
O caso recente do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (CPERS), que pleiteou a suspensão das aulas devido à onda de calor e obteve inicialmente uma liminar favorável, escancarou a fragilidade do arcabouço jurídico na proteção dos trabalhadores em contextos de estresse térmico. A decisão, contudo, foi rapidamente revertida pelo governo do estado, determinando o retorno imediato das atividades presenciais nas escolas. Esse episódio evidencia as lacunas e contradições do atual modelo normativo, no qual medidas emergenciais de proteção podem ser prontamente desconsideradas sem um debate mais profundo sobre seus impactos na saúde e segurança dos profissionais e estudantes.
O jurista e professor Diogo Caldas, do Mestrado Profissional em Ciências do Meio Ambiente da Universidade Veiga de Almeida, alerta sobre a falta de um marco regulatório sólido devidamente atualizado para a recorrências de ondas de calor que garanta a segurança dos trabalhadores ao ar livre:
“O caso do Rio Grande do Sul escancara um problema maior: ainda não temos uma regulamentação clara e definitiva sobre as condições de trabalho em períodos de calor extremo, como as ondas de calor que nos assolarão ainda mais. Embora algumas decisões judiciais emergenciais tentem mitigar os impactos, a reversão dessas medidas apenas reforça a instabilidade e a insegurança jurídica na proteção dos trabalhadores. O calor não pode ser tratado como uma questão secundária; ele já é um fator de risco ocupacional reconhecido mundialmente”.
Essa insegurança jurídica é ainda mais evidente quando se observa a situação dos trabalhadores que exercem suas funções ao ar livre, como operários da construção civil, trabalhadores da limpeza urbana, vendedores ambulantes, guardas de trânsito e agricultores. Para essas categorias, não há normativas específicas que obriguem empregadores a adotar medidas preventivas em situações de calor extremo, deixando-os vulneráveis a doenças relacionadas à exposição prolongada ao calor, como exaustão térmica, desidratação e insolação.
“A Norma Regulamentadora 15 do Ministério do Trabalho não contemplou limites de tolerância para exposição ao calor em atividades realizadas a céu aberto, sem fonte artificial. Nessa seara, o que temos hoje em dia seria apenas o contemplado pela Orientação Jurisprudencial 173, itens I e II, da SBDI-1, reconhecendo o adicional de insalubridade nos casos de calor, quando estiver acima dos limites de tolerância legais, ocasionados pela radiação solar. Contudo, a Norma Regulamentadora 21 (NR-21), cuja última atualização ocorreu no século passado (1999), apresenta diretrizes vagas, limitando-se a exigir a disponibilização de abrigos, ainda que rústicos, para proteger os trabalhadores contra intempéries, sem especificar quais medidas especiais devem ser adotadas para garantir essa proteção”, completa o pesquisador da UVA.
Zonas cinzentas da regulação municipal: quando a saúde do trabalhador depende de uma decisão empresarial
A Prefeitura do Rio de Janeiro possui um sistema de alertas de calor, que estabelece níveis de risco térmico e recomenda ações mitigadoras. Entretanto, a implementação dessas medidas ainda se dá em caráter orientativo, sem a obrigatoriedade de cumprimento por parte dos empregadores. Essa zona cinzenta regulatória permite que o setor empresarial tenha margem para decidir, de forma unilateral, se adota ou não medidas de proteção aos trabalhadores durante ondas de calor extremo.
O professor Ricardo Soares, coordenador do Mestrado Profissional em Ciências do Meio Ambiente da Universidade Veiga de Almeida, destaca a necessidade urgente de atualizar a legislação trabalhista brasileira para proteger adequadamente os trabalhadores expostos a condições climáticas extremas:
"Estamos falando de eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, que são consequências diretas do aumento das emissões de gases de efeito estufa. As temperaturas que antes eram exceção agora se tornaram a norma. O problema é que nossa legislação trabalhista, como a NR-21, não avançou na mesma velocidade. É essencial que haja um marco regulatório atualizado e sólido que determine pausas obrigatórias, fornecimento de hidratação e ajuste dos horários de trabalho para evitar exposição nos períodos mais críticos".
A necessidade de políticas públicas mais efetivas: o que fazer?
Diante desse cenário, especialistas e entidades trabalhistas defendem a criação de legislação específica para regulamentar o trabalho a céu aberto em condições de calor extremo, como as ondas de calor, levando em consideração a intensificação desses eventos devido às mudanças climáticas. Algumas propostas incluem:
- Definição de limites de temperatura para atividades externas: assim como há parâmetros de segurança para trabalho em ambientes insalubres, deveriam ser estabelecidos limites de temperatura máxima para determinadas funções e a suspensão obrigatória das atividades caso sejam ultrapassados.
- Pausas regulares e áreas de descanso: implementação de períodos de recuperação térmica obrigatórios durante a jornada de trabalho, com espaços sombreados e ventilados para descanso dignos e não simplesmente rústicos como preconiza a NR-21.
- Horários flexíveis: possibilidade de ajuste nos turnos de trabalho para evitar exposição nos horários de pico de calor ou suspensão das atividades, caso a integridade física do trabalhador possa ser comprometida.
- Obrigatoriedade do fornecimento de água e equipamentos de proteção: empresas devem ser obrigadas a disponibilizar água potável em quantidade absolutamente necessária e EPIs adequados para minimizar os impactos da exposição prolongada ao calor.
- Incentivos fiscais para empresas que adotem medidas proativas: implementação de benefícios fiscais para empregadores que adotem políticas efetivas de mitigação do calor.
Atualmente, países como a Espanha e os Estados Unidos já avançam em políticas de proteção aos trabalhadores em ondas de calor. A Espanha, por exemplo, determinou a suspensão obrigatória do trabalho ao ar livre quando a temperatura ultrapassa determinados níveis, enquanto em estados norte-americanos como a Califórnia há leis que exigem pausas obrigatórias e fornecimento de hidratação para trabalhadores expostos ao sol.
No Brasil, apesar do reconhecimento crescente do problema, as iniciativas ainda são pontuais e insuficientes para garantir segurança efetiva aos trabalhadores.
“O momento exige um esforço conjunto entre governo, sociedade civil e setor produtivo para garantir que os trabalhadores tenham condições dignas de exercer suas funções sem colocar sua saúde em risco. O calor extremo não é mais um fenômeno isolado; ele se tornou um elemento estrutural da realidade laboral contemporânea e precisa ser tratado como tal na legislação trabalhista”, conclui o professor Diogo Caldas.
Um chamado à ação
A onda de calor que atinge o Brasil e, em especial, o Rio de Janeiro, reforça a urgência de um debate mais aprofundado sobre a segurança térmica no ambiente de trabalho ao ar livre. Sem diretrizes claras e obrigatórias, milhares de trabalhadores continuam expostos a riscos sérios sem garantias efetivas de proteção. É hora de transformar o alerta em ação legislativa concreta, garantindo que o direito à saúde e à dignidade no trabalho prevaleça sobre interesses econômicos de curto prazo.