No dia 17 de outubro, durante a mesa-redonda “Dissidências de gênero e sexualidades”, no evento "Gênero para Além das Fronteiras: Tendências Contemporâneas na América Latina e no Sul Global", promovido pelo Gaep (Grupo de Pesquisa Epistemologia da Antropologia, Etnologia e Política), na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), uma das palestrantes achou apropriado subir na cadeira e dançar mostrando as nádegas para o público, enquanto cantava uma música de sua autoria.

 

Em nota, a UFMA afirma que “por ser um lugar de múltiplas formas de conhecimento, os cursos, de graduação e de pós-graduação, possuem autonomia para discutir os variados temas que permeiam a nossa sociedade”, além de reconhecer que a Universidade é “um espaço plural e de diálogos” e que “a liberdade de expressão é um pilar fundamental da academia”.

 

Em um contexto socioantropológico, nenhum objeto de estudo deve ser, a priori, excluído de análise. Neste entendimento, não há razão para cercear, na Universidade, quaisquer manifestações – exceto as vetadas no Código Penal – que possam ser analisadas científica ou academicamente. Porém, ainda que o grupo de estudo da UFMA justifique o estudo da pedagogia anal, é compreensível a repercussão negativa da performance bizarra na sociedade (pensar se a complacência da Academia, sob o argumento da liberdade de expressão, estaria presente em uma mesa-redonda de deputados evangélicos contrários ao aborto é um exercício interessante).

 

Em 2017 e 2018, Peter Boghossian, James Lindsay e Helen Pluckrose publicaram uma série de artigos falsos em periódicos respeitados da área de Humanidades. A “pegadinha”, conhecida como “grievance studies”, ou “estudos do ressentimento”, envolveu textos que analisavam como a cultura do estupro, o machismo, a homofobia e a performatividade queer se manifestavam nos coitos de cães nos parques de Portland; defendiam a criação de uma categoria de fisiculturismo gordo, argumentando de corpos gordos também são construídos; e até reescreviam o Mein Kampf numa versão feminista.

 

A peça, ou “estudo etnográfico”, como foi definido pelos autores, remete ao experimento de Allan Sokal, nos anos 1990, que também publicou um artigo-pegadinha com o objetivo de criticar algumas pérolas pós-modernas, como a relação feita por Lacan entre o pênis ereto e a raiz quadrada de menos um. Em um outro experimento, conhecido por Dr. Fox, feito em 1973 por Donald H. Naftulin e colaboradores, um ator foi contratado para dar uma palestra a profissionais de educação, inserindo neologismos e frases contraditórias sem sentido. O falso acadêmico, com um treinamento para aparentar confiança, entusiasmo e carisma, recebeu a aprovação de grande parte dos espectadores.

 

Os exemplos acima mostram que talvez exista uma subjetividade difusa na área de Humanidades que faz com que até especialistas tenham dificuldade em identificar falhas conceituais evidentes, fazendo parecer que qualquer coisa, em qualquer contexto, seria aceitável.

 

Mas a publicação acrítica de artigos errados/fraudados não é exclusividade das Humanidades. Ocorre também em Exatas e Biológicas. Porém, os assuntos atingem a população de maneira diferente, já que, no dia a dia, existem temas sobre os quais não especialistas sentem-se mais autorizados a opinar. Soma-se também a isso o preconceito que cada um carrega em relação às pesquisas de cada área.

 

Qual a diferença entre o glúteo dançante na UFMA e um estudo da Fiocruz que aplica reiki pelo celular? À primeira vista, é possível apontar duas diferenças entre as pesquisas: a primeira foi ridicularizada e a segunda é vista com respeito por boa parte da Academia e pela imprensa. A outra diferença é um ponto positivo às nádegas, já que elas têm realidade física e biológica, qualidades que faltam ao reiki. Em que pese ainda o caráter pseudocientífico do reiki, relacionado a uma energia vital de cura que emana das mãos (no caso da Fiocruz o negócio ainda atinge a pessoa do outro lado do telefone), universidades sediam e patrocinam esse tipo de atividade esotérica.

 

A prática também está integrada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e recentemente a profissão de “terapeuta reiki” foi incorporada à Classificação Brasileira de Ocupações (diga-se de passagem que a profissão “ufólogo” também foi).

 

Na área das ciências denominadas “duras”, como a física, por exemplo, os erros e fraudes são mais fáceis de detectar. Uma determinada afirmação normalmente tem impacto em diversos resultados secundários que podem ser medidos e calculados de diferentes maneiras, e por grupos distintos. Isso faz com que a besteira seja rapidamente identificada e descartada. Isso, porém, não impede que as alegações mirabolantes apareçam.

 

Em 1903, René Blondlot, físico francês, anunciou ter descoberto uma nova radiação. O nome escolhido, raios N, foi dado em homenagem à sua cidade, Nancy, na França. O método utilizado para atestar a existência do novo fenômeno se baseava na análise visual, feita pelo experimentador, do brilho de uma faísca. Uma “evidência” baseada na impressão pessoal deveria ser tratada com desconfiança pela imprensa, mas várias publicações do início do século 20 reportaram os experimentos que “detectaram” essa radiação.

 

Jean Becquerel, filho de Henri Becquerel, um dos responsáveis pelo descobrimento da radioatividade, também se interessou pela pesquisa de Blondlot e realizou um experimento que “detectou” um aumento de emissão de radiação de cérebros de cães submetidos a vapores de clorofórmio, éter, ou injeções de morfina. Jean ainda notou que, após a diminuição da intensidade dos raios N, surgia uma outra radiação, que chamou de raios N1. O experimento canino não difere muito dos assuntos dos artigos de Boghossian e colaboradores. Em setembro de 1904, os raios N já haviam caído em descrédito na comunidade de físicos.

 

Seja por vieses pessoais ou pela falta de conhecimento nas diversas áreas de estudo, temas com níveis semelhantes de (falta de) rigor acadêmico-científico são percebidos de maneiras distintas pela sociedade. Ideias sem fundamento não são a sina de apenas um campo de conhecimento, mas se espalham por todas as áreas. É uma pena, porém, que o pensamento crítico, que poderia combatê-las e também estar presente nos vários setores, seja cada vez mais raro.

 

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência