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O desrespeito a Klara Castanho e à menina catarinense: para especialistas, direitos de mulheres que sofreram estupro foram claramente violados


No Brasil, a interrupção de gravidez decorrente de violência sexual não precisa de autorização judicial -- e, assim como a entrega de uma criança que nasceu de estupro à adoção, tem direito a sigilo

Nas últimas semanas, os temas do estupro e do aborto voltaram a repercutir no Brasil diante do estarrecedor caso de uma menina catarinense de 11 anos que, mesmo vítima de estupro, foi impedida -- por uma juíza -- de interromper a gravidez resultante. (O caso foi agravado ainda pelo sequestro da menina grávida pelo Estado).

Em tema correlato, o caso da atriz Klara Castanho, que teve o sigilo violado ao entregar seu filho -- fruto de estupro -- à adoção, suscitou novo debate em torno dos direitos das mulheres em referência a estas questões.

O advogado e professor Leonardo Pantaleão explica em quais circunstâncias é permitido o aborto legal no Brasil. “As causas que possibilitam a realização do abortamento sem que seja considerada uma prática ilícita são, de acordo com o Código Penal, duas: 1. se não há outro meio de salvar a vida da gestante -- aborto necessário; e 2. se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal -- aborto sentimental ou humanitário.”

Se um caso de gravidez se adequar a estes requisitos, então, o que a mulher deve fazer para realizar o procedimento legalmente? “Deve sempre procurar hospital ou estabelecimento similar que tenha condições de realizar o procedimento em condições mínimas de segurança. Nesses locais deve ser oferecida à mulher a opção de escolha da técnica a ser empregada: abortamento farmacológico, procedimentos aspirativos ou dilatação e curetagem. Tal escolha deverá ocorrer depois de adequados esclarecimentos sobre as vantagens e desvantagens de cada método, suas taxas de complicações e efeitos adversos.”

E quais estabelecimentos de saúde podem realizar abortos? “Este procedimento pode ser realizado em qualquer estabelecimento de saúde -- público ou particular -- com condições de realizá-lo em segurança.”

No caso da menina de 11 anos, o hospital negou o procedimento por a gestação já estar avançada, à época. “A legislação brasileira não prevê prazo máximo de gestação para a realização do abortamento -- porém, há uma norma técnica do Ministério da Saúde que recomenda que o procedimento seja realizado em feto até, no máximo, 22 semanas e menos de 500g.”

Segundo o advogado criminalista Matheus Falivene, um hospital que se recusa a realizar um aborto legal pode ser penalizado nas esferas cível e administrativa, mas isso não se estende ao médico que fizer o mesmo. “Em regra, não -- pois, pelo Código de Ética Médica, o médico possui a objeção de consciência, podendo se recusar a realizar um procedimento com o qual não concorda ou que considere inviável.” O advogado Leonardo Pantaleão concorda em parte. “Os hospitais possuem suas regulamentações internas sobre o tema e, desde que entendam que a hipótese concreta não se molde às exceções da legislação, podem se opor ao procedimento. Os médicos, por sua vez, também podem se recusar à prática do abortamento -- com exceção da hipótese de risco de vida da gestante --, alegando objeção de consciência.” (“Esta objeção é um direito garantido aos médicos como modo de preservação existencial daquele ser que desenvolve essa profissão”, diz Pantaleão. “Nada mais é do que o direito de se recusar a realizar determinado ato que, supostamente, violaria seus valores pessoais.”)

No caso da menina de 11 anos, a decisão da juíza desrespeitou os direitos da garota, portanto. Pantaleão não tem dúvidas. “Sim, na medida em que a interrupção da gravidez decorrente de violência sexual prescinde de autorização judicial. Trata-se de um direito garantido por lei e, portanto, seu impedimento caracteriza violação a direitos permitidos pela própria legislação brasileira em vigor.”

Mas é verdade que não é necessária uma autorização judicial para a vítima de estupro pleitear um aborto legal no Brasil? Falivene explica. “Não é necessária, seja para aborto decorrente de risco para a gestante -- aborto terapêutico -- ou de estupro -- aborto humanitário. No caso de aborto decorrente de estupro, não é exigida a condenação do acusado, apenas o boletim de ocorrência.”

E mais: a mulher que realiza o aborto legal tem direito ao sigilo, bem como aquela que colocar a criança para a adoção depois que ela nascer, como fez a atriz Klara Castanho, em outro caso de grande repercussão, após o vazamento de informações sigilosas a respeito. “Todo procedimento médico é, em regra, sigiloso”, diz Falivene. “Da mesma forma, a pessoa que deseja colocar o recém-nascido para adoção também tem protegidos o seu sigilo e a sua integridade, nos termos da legislação civil.”

Falivene reitera as orientações, por fim, à mulher que precisa de um aborto legal ou que quer colocar o filho recém-nascido para adoção. “Com relação ao aborto legal, esta mulher deve registrar a ocorrência e procurar a equipe médica, que procederá às demais orientações para a realização do procedimento. Com relação à entrega para adoção, a mãe pode manifestar seu interesse antes ou após o porto. Assim que o bebê nasce, sua solicitação é encaminhada à Vara da Infância e Juventude, que realizará os demais trâmites judiciais, que são sempre sigilosos.”

Fontes: 
Leonardo Pantaleão, advogado e professor, com mestrado em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Doutorado na Universidad Del Museo Social Argentino, em Buenos Aires e Pós-graduado em Direito Penal Econômico Internacional pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Universidade de Coimbra, em Portugal, professor da Universidade Paulista. Autor de obras jurídicas, palestrante com ênfase em Direito Penal e Direito Processual.

 


Matheus Falivene, Advogado nas áreas de Direito Penal e Direito Penal Econômico. Doutor e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especializado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/Portugal. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas. Professor na pós-graduação da PUC-Campinas.