No domingo, o DIA
iniciou uma série de reportagens sobre os problemas envolvendo a
produção de pareceres por psicólogos da Delegacia da Criança e do
Adolescente Vítima. Após denúncias de falhas técnicas e éticas, o
Conselho Regional de Psicologia puniu os peritos da Dcav. Emerson Brant,
único que ainda atua na delegacia, teve o pedido de cassação aprovado
por unanimidade
Segundo especialistas, em cerca de 85% dos casos o crime ocorre dentro
da família, e as vítimas são sobretudo meninas entre 6 e 14 anos. A
dificuldade é que a pouca idade exige preparo dos profissionais para
identificar casos reais e falsas denúncias. Não há modelo, mas
estratégias para, por meio da técnica psicológica da escuta, entender a
complexidade do que os pequenos dizem. Para duas profissionais que
trabalham na área há mais de 20 anos, um ponto central é ouvir todas as
pessoas próximas à criança, inclusive o acusado — o que não é feito na
Dcav.
A psicóloga do Núcleo das Varas da Família da Capital no TJ
Glícia Brazil conta que o trabalho na área precisou ser construído.
“Não há manual que ensine a ouvir criança. Isso vem da técnica de
escuta”, explica ela.
Glícia diz que ao longo do tempo fez
uso de técnicas diferentes, mas percebeu que era necessário entrevistar
todo o núcleo central de convívio das supostas vítimas. “Não posso ouvir
somente a criança. Para ela, importa quem cuida dela. Às vezes é a avó
ou uma tia”, afirma.
Ela prefere fazer o atendimento das pessoas
próximas e da própria criança de modo conjunto em um único dia.
“Primeiro, em geral, peço para a menina e quem cuida dela entrar. A
criança começa a ser ouvida e o acusado vem uma hora e meia depois”,
descreve.
Para a profissional, a dinâmica
conjunta é importante para a avaliação geral de comportamentos, reações e
emoções. Tanto sozinha quanto junto aos pais. Além da conversa, Glícia
proporciona atividades adequadas à faixa etária para criar um ambiente
de proximidade. Ela diz que pode ser um processo doloroso e admite que o
núcleo sofreu críticas, mas garante que os resultados são importantes
para identificar denúncias reais e casos de síndrome de alienação
parental — quando um dos genitores quer afastar o filho do outro.
A psicóloga Andreia Calçada, que também já
atuou como perita do Juízo, concorda com a necessidade de entrevistar
toda a família. Ela acrescenta que muitas vezes as crianças são
induzidas pelos pais, especialmente durante disputas de guarda. “Criança
mente sim ou manipula afetivamente, principalmente quando precisa se
defender. Em meio a essa batalha, ela se alia a algum deles. Às vezes
ela entende mal ou fantasia”, aponta.
Ambas questionam a eficácia dos bonecos
anatômicos usados na Dcav. Glícia conta que esse recurso deixou de ser
utilizado no TJ há 15 anos porque as crianças chegavam “cheias de
maneirismos da Polícia e isso confundia.”
As falsas denúncias ainda são tratadas como
tabu e dados do TJ contrastam com os da Dcav. Em 2013, 70% dos casos
registrados na delegacia se tornaram denúncias ao MP. Não há dados das
Varas Criminais, mas nas de Família da Capital, apenas 20% se confirmam.
Novo modelo de atendimento
Na tentativa de aprimorar o atendimento às
vítimas de abuso sexual infantil deve ser inaugurado em março o Centro
de Atendimento ao Adolescente e à Criança (CAAC). O órgão idealizado por
um grupo de promotores do Ministério Público Estadual visa a
centralização dos serviços de saúde, exames e depoimento dentro do
Hospital Souza Aguiar.
“O projeto pioneiro fica no centro, mas a ideia
é expandir para que a criança não precise ir ao IML e nem à delegacia”,
explica a promotora Patrícia Pimentel, uma das coordenadoras do
projeto.
O atendimento será realizado por 10
profissionais entre psicológos, assistentes sociais, médicos e
policiais. Na unidade, foram criadas três salas onde a vítima vai ser
atendida por um pediatra e medicada, se for necessário. Em seguida, será
registrada a ocorrência em um posto da Dcav que funcionará no local e o
IML também terá sala própria para exames.
No mesmo espaço serão feitas as entrevistas
qualificadas. Nessa sala, as vítimas serão ouvidas por profissionais
treinados e os depoimentos serão gravados em aúdio e vídeo para instruir
processos judiciais.
“Não é requisito que seja psicólogo.
Preferíamos até que fosse porque são pessoas com habilidade específica,
mas como houve muita resistência e outros profissionais estavam
interessados a capacitação foi aberta”, diz a promotora.
Patrícia disse que o projeto é inspirado no
Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil (Crai), que funciona
em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul desde 2001. A coordenadora do
Crai, Eliane Soares, contou que o núcleo gaúcho funciona de modo
semelhante ao que será inaugurado no Rio. A diferença principal diz
respeito aos depoimentos. “ O posto policial só serve para fazer o
registro. A escuta é feita pela perícia psiquíca”, conta Eliane.
Essa equipe é composta por médicos e psicólogos
do IML. No Rio, um dos que fizeram treinamento para começar a atuar no
CAAC foi o psicólogo da Dcav Emerson Brant. Ele e Artur de Oliveira
foram punidos pelo Conselho Regional de Psicologia pela atuação no caso
que condenou o diretor financeiro da Creche Gente Inocente, Paulo
Barcellos, em 2010.
A promotora Patrícia Pimentel disse desconhecer
os autos do processo do CRP, mas acredita em uma perseguição aos
profissionais que atuam com a Justiça. Há discordância entre o Conselho
Federal e o Judiciário sobre a atuação dos psicólogos em casos de abuso
sexual. Em 2010, o CFP quis regulamentar o trabalho dos profissionais
nessa área, proibindo “a inquirição” de crianças por entender que o
psicólogo não pode estar subordinado à outras instituições durante a
avaliação. O MP contestou e a Justiça derrubou a resolução.
Desde 2010, também funciona no TJ o chamado
depoimento especial. A medida evita que na fase de instrução dos
processos as crianças sejam levadas para as audiências. Os depoimentos
são intermediados por psicólogas em salas reservadas.http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-02-24/cerca-de-85-dos-casos-de-abuso-sexual-infantil-ocorrem-dentro-da-familia.html