Símbolo maior da resistência, eles enfrentaram a ditadura com bolas de gude e pagaram a ousadia com exílio e morte
Constança Rezende
Rio - Eles não eram tantos e nem tinham
celulares para gravar imagens como agora. Porém, como nas manifestações
de junho passado, fizeram um barulho capaz de ecoar nos quartéis do
regime mais duro que o Brasil já teve. Em 1968, o gigante que acordou
nas ruas brasileiras, disposto a enfrentar a cavalaria armados com
simples bolinhas de gude, era jovem, estudante universitário e carregava
o sonho de mudar o mundo. Nem as bombas de gás lacrimogêneo, os tiros
de fuzil e o pau-de-arara nos porões da ditadura conseguiram esmagar a
utopia.
“Éramos uma minoria insignificante que produziu
certo impacto. Não abalamos a ditadura, mas fomos uma picada que doía. A
gente desafiava, ia para as ruas e militar não gosta de ser desafiado”,
avalia o historiador e ex-presidente da União Metropolitana dos
Estudantes (UME), Daniel Aarão Reis. Se o gigante tinha uma voz, ela
pertencia ao alagoano Vladimir Palmeira, o grande líder das ruas que
reunia milhares de estudantes quando discursava em seu banquinho.
Vladimir Palmeira (centro) foi um líder ativo, inclusive na Passeata dos Cem mil
Foto: Evandro Teixeira / CPDOC JB
Para ele, os estudantes não tinham
tanto peso por não estarem inseridos no contexto social como os
operários. “A sociedade não se preocupava com manifestação de estudante,
e sim com reforma agrária. As manifestações eram importantes, mas não
tinha tinha operário e camponês. Então, os atos foram sempre como um
passeio”, disse. Mesmo assim, ele ressalta as vitórias na época, como
mais verba para a universidade pública.
Até mesmo antes do golpe os estudantes
reivindicavam a gratuidade do ensino superior, brigavam por vagas para
todos nas universidades, queriam estar nos órgãos colegiados e opinar
pela substituição de professores que achassem ruins. Um dos grandes
palcos para as discussões era o Restaurante Calabouço, no Centro do Rio,
que oferecia refeições a preços baixos para estudantes, policlínica
dentária e um pequeno comércio, até ser fechado pela ditadura. Em uma
reação dura da polícia à organização de uma passeata no restaurante, no
dia 28 de março de 1968, o estudante Edson Luís foi assassinado pela PM
no local. A nitroglicerina se espalhou rapidamente.
O fato desencadeou uma reação mais
ativa dos estudantes e, como consequência, o ato mais duro do regime — o
Ato Institucional número 5, mais conhecido como AI-5, que suspendia
direitos políticos, cassava deputados e senadores e instituia a censura.
Para o ex-presidente da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço
(FUEC), Elinor Brito, a luta passou a ser contra a repressão. “Depois da
morte do Edson, surgiram duas expressões: “Um estudante foi
assassinado, poderia ser seu filho” era a mais importante. Muitos como
eu também entraram para a luta armada na clandestinidade”, lembra Brito,
preso e depois trocado pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher,
sequestrado pela guerrilha do VPR, organização da qual a presidenta
Dilma fez parte. No mesmo ano, a Passeata dos Cem Mil levou artistas e
intelectuais às ruas contra a ditadura.
Bolas de gude jogadas contra a cavalaria nas ruas
Foto: Chicarino / 21-06-1968
Mesmo durante a abertura lenta,
gradual e segura, no governo do general Ernesto Geisel, os estudantes
continuaram a enfrentar a censura e os militares pela anistia aos presos
políticos. Um dos presentes no movimento foi o atual ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, que estava no
Centro Acadêmico de Direito da Uerj. “Mesmo sem autorização para
funcionar, fazíamos um trabalho ideológico. Mas tínhamos a certeza que
estávamos lutando pela coisa certa”, disse.
'Os Black Blocs são parasitas', diz Vladimir Palmeira, ex-líder estudantil
Um dos principais líderes das manifestações
contra a ditadura, Vladimir Palmeira vive uma vida simples como
professor universitário, mas diz que não esqueceu seus ideais. Ele vê as
manifestações de hoje com bons olhos, mas critica a depredação do
patrimônio, a pouca representação da UNE e a utilização de máscaras,
pois “num trabalho de massa se deve mostrar cara.” Para ele, a ferida da
ditadura só vai cicatrizar em “talvez dez séculos.” 1. Quais as diferenças das manifestações na época da ditadura para as de hoje?
Éramos bem estruturados, o que o movimento
Passe Livre, por exemplo, não é. Iamos desde o centro acadêmico até a
UNE, o que dava muito certo. Tinha conotações políticas, mas também era
reivindicatório. Mas há o contexto da época. Na democracia, quem se
interessa por política pode ir para os partidos. A repressão também não
dá para comparar, eles atiravam de fuzil e a gente ia preso, torturado.
Pichávamos porque não havia liberdade de expressão. Hoje, acho uma
bobagem pichar, estamos num sistema democrático. Quebrar banco também:
você deve quebrar o capitalismo, não o banco, que eles vão reconstruir e
cobrar de gente. Não vejo vantagem nisso. Quebraram banca de jornal,
coitado do pobre trabalhador...Não tem sentido, assim como num trabalho
de massa se deve mostrar a cara. Esses black blocs são parasitas das
manifestações. Se gostam de brigar, chamem a polícia para um torneio e
não atrapalhem os manifestantes que vão para as ruas. 2. Como vê a UNE de hoje?
Ela parece muito com a UNE de antes do golpe,
muito ligada ao estado. Os ministérios atuavam muito, como o do Trabalho
e Educação. Hoje, ela é muito pouco representativa, assim como os
movimentos estudantis em seu conjunto. Mas nossa democracia também não
atrai tanto porque os partidos são de baixa categoria. Dá um certo
cansaço, não é como uma ditadura que você tem que enfrentar porque ela
não te deixa falar. O que o centro acadêmico faz é passar as
recomendações dos partidos políticos. 3. O povo apoiou o golpe?
Tudo tem participação civil, porque ela não é
uma corporação, tem todo o tipo de gente. Mas a ditadura é militar.
Dizer que não foi é tentar dissolver os crimes que os militares
cometeram. O problema é que as Forças Armadas daquela época são as
mesmas de hoje e o currículo de ensino é o mesmo, o que pode dar margem
até para um futuro golpe. 4. Por que, após 50 anos, a ditadura ainda é uma ferida?
Porque foi uma experiência traumática para
sociedade e porque não puniram torturadores. Vira e mexe as famílias
estão procurando cadáveres para enterrar seus mortos. Além disso,
queimaram documentos e as pessoas têm direito de saber o que se passou.
Ela vai cicatrizar, talvez, daqui há dez séculos. O cara torturado vai
levar isso para a vida inteira. Calabouço vira documentário
Além das manifestações nas ruas, os estudantes
viram na cultura outra forma de protestar. A partir disso surgiram o
Movimento da Cultura Popular (MCP) e o Centro Popular de Cultura (CPC),
que realizavam festivais de música e cinema como forma de inclusão
social. Também produziam peças e faziam a edição de livros. O início de
1972 também ficou conhecido como ‘O verão do desbunde’, quando muitos
jovens resolveram “perder o autodomínio”, e deixar de lado a militância,
influenciados pela onda de paz e amor hippie que dominava os Estados
Unidos e chegava ao Brasil.
Até hoje a ditadura ainda serve de inspiração
para a produção cultural, como o filme ‘Calabouço 1968 — Um tiro no
coração do Brasil’, que conta sobre o movimento estudantil que resultou
no assassinato do estudante Edson Luís no restaurante. O filme será
lançado sexta-feira, na OAB do Rio. O produtor, Paulo Gomes, fez parte
da militância estudantil e foi preso pela ditadura e mandado para a
prisão, na Ilha Grande. Um dos entrevistados no documentário é seu
irmão, Ezequiel, que perdeu a mão em uma manifestação com uma bomba
disparada pelos militares.
Vídeo: Cesar Maia fala sobre prisão em Ibiúna e exílio no Chile
Doutor Honoris Causa em Educação e Direitos humanos; ex- servidor na Prefeitura Municipal de Resende/RJ; Ex- Assessor de Gabinete do Prefeito na Prefeitura Municipal de Barra Mansa/RJ; Ex-servidor da Fundação Beatriz Gama de Volta Redonda/RJ. Eleito por três mandatos no Conselho Superior do Instituto Federal do Rio de Janeiro e dois no Conselho Municipal de Juventude de Barra Mansa/RJ. Consultor ad hoc da Associação Mineira de Pesquisa e Iniciação Científica, avaliando os trabalhos de Iniciação Científica e Tecnológica da 4ª Feira Mineira de Iniciação Científica (4ª FEMIC); Selecionado avaliador em um importante Prêmio de Inovação no estado de Minas Gerais e um outro no Espírito Santo em 2022. Encerrou 2022 recebendo homenagem do Governo Federal através do Programa Pátria Voluntária.