Confira a matéria publicada na versão impressa do
jornal Expresso, de Portugal, por Cristina Peres, sobre a VI Bienal de
Jovens Criadores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP),
que aconteceu em Salvador (BA) de 3 a 7 de dezembro.
Em
1998, Angola estava em guerra e havia apenas seis anos que Moçambique
assinara o Acordo Geral de Paz. Timor-Leste, ainda ocupado pela
Indonésia, tinha estatuto de observador da CPLP e só viria a
constituir-se como país em 2002. A Guiné--Bissau dava início a novo
episódio de violência que obrigou mais alguns dos seus cidadãos a
procurarem refúgio no estrangeiro (em Cabo Verde, Senegal e Portugal) e
São Tomé e Príncipe estava a assinar o acordo para a exploração de
hidrocarbonetos. Portugal estava a anos de distância do euro e mais
ainda da crise mundial que a moeda única viria ajudar a aprofundar. E o
Brasil... não estava. Precisamente em julho daquele ano, Cabo Verde —
após uma remodelação governamental que ajudou a atrasar o processo —
recebia as delegações nacionais dos países na I Bienal dos Jovens
Criadores da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) nas
cidades da Praia e do Mindelo.
A Bienal foi
originalmente proposta pela então Secretaria de Estado da Juventude
(SEJ) à CPLP durante a I Conferência de Ministros da Juventude da CPLP
(Lisboa, julho de 1996). Adotou-se o modelo já experimentado da Bienal
dos Jovens Criadores da Europa e Mediterrâneo (lançada em 1998), na qual
Portugal já participava havia anos por intermédio da organização do
Clube Português de Artes e Ideias (CPAI), em colaboração com a então
denominada SEJ e o Instituto Português da Juventude.
Organização
e tutela mantiveram-se até hoje, os painéis de debate organizados em
cada edição foram sempre esgrimindo as questões mais prementes das
estruturas organizacionais do país anfitrião e as dúvidas dos jovens
participantes relativamente a elas e às suas aspirações pessoais. As
edições aconteceram em Cabo Verde (Praia e Mindelo), Portugal (Porto),
Moçambique (Maputo), Portugal (Lisboa), Angola (Luanda) e Brasil
(Salvador da Bahia), estando previstas as próximas para Moçambique
(2015) e Portugal (2017).
Tudo deveria indicar que
a rodagem destes anos poderia ter tornado a Bienal da CPLP um evento,
se não previsível, pelo menos estável. Bom, sim e não. Porque à
semelhança das alterações que a Bienal da Europa e do Mediterrâneo foi
sofrendo, com a expansão que veio a incluir países do Norte de África e
dos Balcãs (cabendo a França e Itália o núcleo duro da organização), a
dinâmica da Bienal da CPLP tem evoluído à sua maneira. “Aconteceu”
muitas vezes literalmente à última hora, contrariando as perspetivas
mais realisticamente pessimistas, e a sua dinâmica tem sido alterada
pela medida da estruturação dos Estados que nela participam, dos
organismos a quem foi sendo entregue a tutela dos assuntos da juventude
(e do desporto) e, consequentemente, das comissões responsáveis pelas
escolhas das quais resultam as delegações representantes de cada país.
Relembrar
o contexto daquela primeira edição permite avaliar como, em 15 anos, as
realidades se alteraram para cada um dos oito países de língua oficial
portuguesa. A exceção parece ser a Guiné-Bissau, país que não foi
convidado a participar na VI edição do evento em Salvador da Bahia
porque uma das exigências fundamentais que a CPLP faz aos seus membros é
a defesa e a consolidação da democracia.
Talvez
seja por isso que a redação da Carta da Juventude da CPLP, que acaba de
ser assinada na reunião de ministros e secretários de Estado da
juventude e do desporto reunidos no Brasil, paralelamente à VI Bienal,
faça constar o seguinte no seu preâmbulo: “Os Estados-membros da CPLP
afirmam o desenvolvimento económico e social, o combate à pobreza, a
integração e recuperação das crianças-soldado, a eliminação do trabalho
infantil, a promoção de uma cultura de paz e de tolerância, o combate ao
discurso do ódio, o respeito pelos direitos humanos e a prevenção de
conflitos como objetivos centrais da cooperação internacional.”
Parte
da agenda da reunião de políticos que decorreu em Salvador tentou
refletir sobre o modus operandi da comissão permanente da CPLP para
fazer com que aquele órgão responsável pela organização, em anos
alternados, da Bienal de Jovens Criadores e dos Jogos da Lusofonia,
exista e faça existir mais acontecimentos e com mais frequente
periodicidade. O objetivo era promover “uma execução mais efetiva e
plural das decisões” tomadas nas reuniões políticas, com “o fim de
aumentar o número de atividades e as ocasiões de troca e intercâmbio”
entre os jovens dos oito países, como poderia ler-se numa formulação de
comunicado oficial.
Na realidade, o que isto quer
dizer é que os responsáveis por estas áreas daqueles países já
perceberam que se a comunidade só se manifestar uma vez de dois em dois
anos em cada uma das áreas, arrisca-se a desaparecer do mapa. Ou a fazer
esboroar as vantagens que pode trazer, a cada país à sua maneira, uma
reunião improvável de países situados em quatro continentes unidos por
uma parte da sua história que lhes legou uma língua comum.
É
evidente que a defesa de direitos comuns para os jovens dos países da
CPLP é de todo o interesse para as políticas externas dos oito Estados,
na medida em que elas podem ou devem refletir o trabalho feito a nível
interno.
O Brasil é um bom exemplo. O país assumiu
que o investimento feito pelo Presidente Lula da Silva na diplomacia e
nos negócios com países africanos poderia ser reforçado, durante a
presidência de Dilma Rousseff, com uma aproximação à CPLP. O Brasil
participou pela primeira vez nesta VI edição “não por desinteresse
político, mas por impossibilidade de dar prioridade a esta área” até
agora, já que a secretaria da Juventude foi criada apenas em 2005 sob o
chapéu institucional das valências da presidência.
A
responsável pela pasta garantiu: “A nossa entrada agora é para valer”.
Severine Macedo assegurou ao Expresso que vale a pena respeitar a
diferença de cada um dos países desta comunidade. Contudo, sublinhou que
todos os Estados deveriam ser firmes relativamente às matérias “que nos
unificam”. É o caso da qualidade da educação, da qualidade da saúde dos
jovens, em especial das mulheres, coincidindo aqui mais uma vez com a
agenda interna do Governo PT (Partido dos Trabalhadores), que criou
também uma secretaria para lidar com as questões das mulheres e que tudo
tem feito para potencializar a participação política dos jovens.
O
que nunca mudou nas seis edições da Bienal foi o valor do encontro.
Como se o resultado do intercâmbio entre os jovens tivesse vida própria,
ele faz de cada evento uma “Bienal da Descoberta”, como alguém chamou à
de Cabo Verde. Os jovens têm por privilégio o direito de se preocuparem
apenas com o horizonte temporal da sua geração. Talvez alguns dos
participantes na primeira edição ocupem hoje cargos de decisão política,
já que têm idade para isso. Mas no momento da experiência do primeiro
encontro, um brasileiro, um moçambicano ou um são-tomense, tal como um
timorense, reagem de forma semelhante. À exceção da Europa, onde há
circuitos normalizados para jovens há mais tempo, é desde logo evidente
que a circulação de pessoas não é umdado adquirido, seja pela dimensão
dos países, pela sua história recente ou distância geográfica. Por isso,
o Brasil aproveitou a Bienal para fazer uma primeira mostra nacional de
criadores vindos dos 26 estados federados.
Isto
não quer dizer que as áreas do evento — artes plásticas, fotografia,
joalharia, design de equipamentos, moda, música e dança — fossem
indiferentes. Significa que reunir comitivas de jovens africanos na
cidade com maior número de negros fora de África — que é Salvador da
Bahia — serviu outra das bandeiras prioritárias do Governo PT.
“A
juventude é uma das preocupações centrais no Brasil. Em julho, ela foi
para as ruas manifestar a sua inquietude. Há uma juventude vítima de
exclusão no nosso país, os afro-descendentes, e há uma violência
dirigida contra eles numa sociedade que não se diz racista, mas que
pratica o racismo”, disse o ministro da presidência Gilberto Carvalho na
abertura da conferência. O ministro apelava a um novo modelo de
sociedade que seja capaz de pôr fim ao “genocídio dos negros”: as
estatísticas revelam que dois negros são assassinados por hora no estado
da Bahia, o equivalente à queda de um avião por semana no qual 75 por
cento dos passageiros fossem negros.
Não faltaram
bandeiras dos países participantes exibidas e agitadas em cada evento
da Bienal, sendo Angola e Moçambique os campeões da afirmação da
nacionalidade. Ao fim de uns dias, um jovem brasileiro assumiu que não
lhe passara pela cabeça levar uma bandeira na bagagem: “Eu estou no meu
país!”. Diferenças de atitude à parte, o que tenha havido para
esclarecer foi sempre falado em português.
Fonte: Jornal Expresso (Portugal) – Baixe aqui a versão em PDF da matéria
cperes@expresso.impresa.pt
(O Expresso viajou a convite do CPAI)